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quinta-feira, 28 de março de 2013

A ex-madrasta

sobre os efeitos da separação sobre os padrastos e madrastas que perderam contato com seus enteados.

O desencontro se deu numa loja de departamentos: sem ser vista, ela pôde observar com calma a moça que circulava entre as araras. Tentava em cada traço recordar a garotinha insone que lhe pedia muitas histórias antes de dormir. Foram tantas noites juntas lutando contra os medos do escuro. A jovem mulher não evocava em nada sua menina, sua boneca Emília depois de engolir a pílula falante. Tornara-se uma desconhecida. Depois de tantas conversas sem pé nem cabeça, hoje não imaginava nada sério para lhe dizer. Devia estar com vinte e quanto? Passara-se mais de uma década da separação e todas as fantasias de manter contato foram dolorosamente dissolvidas. No fim do casamento, parecia-lhe óbvio que manteriam um laço. Com o tempo sua incredulidade foi dando lugar à resignação: era apenas a ex-esposa do papai.
As novas configurações familiares produzem padrastos e madrastas órfãos de uma família que sentiram como sua. As razões para esses afastamentos são infinitas, mas a central é que essas relações com os enteados são vistas como um gesto romântico, que consiste em cuidar e valorizar os filhos do outro. Alguns vínculos podem se tornar fortes, porém poucos driblam o fim do casal.
Depois de uma separação os filhos mantêm uma fantasia duradoura de reunificar a família. Aliás, mesmo que já não se gostem seus pais ainda serão obrigados a se encontrar, discutir providências, finanças, partilhar festividades, resolver problemas. Já o novo casal do pai ou da mãe é visto como uma obstrução a esse fantasioso propósito de reencontro do casal parental. O amor recém chegado sempre vai acabar herdando uma culpa, que em geral não teve, pelo fim de uma família, que podia ser ruim, mas era a que originou aquele filho.
Claro que há exceções, mas frequentemente, quando chega ao fim um relacionamento onde o filho é só de um, parece ser a hora perfeita para uma espécie de vingança. O padrasto ou madrasta serão condenados ao ostracismo, numa demonstração de fidelidade aos pais, e ressurgirá o despropositado desejo de que o casal original volte a se encontrar. Numa separação, frente à partilha dos afetos, o ex-enteado tomará o partido do seu pai ou mãe, além de deixar claro aos pais originais que nunca os substituiu, apenas aceitou aquela madrasta ou padrasto como parte do pacote do novo casamento.
Em pé, na loja de departamentos, lembrava o passado quando a garota a fizera sentir-se quase uma mãe. Seu ex-marido aprovava a intensidade da relação, a mãe da menina educadamente aceitava a ajuda. Hoje, sem ao menos um nome certo para o que sente, resolveu sair de cena sem chamar a atenção.
(Publicado na Revista Vida Simples, edição de outubro de 2011)

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